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segunda-feira, 11 de abril de 2011

A MORTE DA PÍLULA

A indústria farmacêutica vive um impasse sem precedentes. A produtividade dos pesquisadores está em queda, a patente de um número inédito de remédios expira nos próximos anos e cresce a concorrência dos genéricos. Para desatar esse nó, o setor terá de promover uma nova revolução tecnológica
Eis uma iniciativa surpreendente. A Janssen-Cilag, que integra o grupo Johnson & Johnson, ofereceu recentemente ao governo britânico um medicamento chamado Velcade, usado no combate a um tipo raro de câncer, o mieloma múltiplo. De difícil diagnóstico, a doença ataca as células da medula óssea. O tratamento tem preço salgadíssimo. Custa US$ 24 mil. Até aqui, nada de anormal. A novidade surge na hora de pagar a conta. De acordo com a proposta da companhia, o dinheiro só seria desembolsado pelo serviço público de saúde caso exames confirmassem uma reação positiva dos pacientes à droga. Sem essa prova cabal de eficácia, a empresa arcaria com os custos da terapia. Ou seja, o laboratório apropriou-se de uma ação típica das redes varejistas, consagrada pela máxima da “satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta”. Em tempos normais, esse tipo de tática aplicada a um remédio soaria, no mínimo, improvável. Ocorre que os novos tempos nada têm de normais para a indústria farmacêutica.
O setor passa por uma metamorfose sem precedentes. Chamado com propriedade pelos americanos de “Big Pharma”, é, simplesmente, colossal. No ano passado, movimentou estonteantes US$ 860 bilhões, uma quantia comparável ao PIB de nações prósperas como a Coreia do Sul, consagradas como a Holanda ou emergentes como o México. Até meados da última década, ostentava o título de mais rentável do planeta e abrigava os executivos mais bem pagos da indústria. Hoje, essa opulência desbotou. As empresas farmacêuticas estão sendo asfixiadas por um conjunto inédito de pressões. Somadas, elas afetam o sistema nervoso do negócio: a capacidade de manter um fluxo constante de inovações, lançando com regularidade novos sucessos nas prateleiras das farmácias. Como reação, as grandes companhias do ramo buscam fôlego em fusões e, não raro, em cortes de despesas. No ano passado, demitiram 53 mil pessoas, sendo que, em 2009, outras 61 mil já haviam sido dispensadas.

Da química à biologia
Apesar dos sintomas, o epicentro da crise não está, exclusivamente, na escassez de criatividade nos laboratórios. O pano de fundo da questão é outro. A indústria farmacêutica passa por uma mudança de paradigma tão radical quanto delicada. Essa travessia tem como ponto de partida um mercado estável, consolidado ao longo do último século. Esse é um mundo em que os remédios eram produzidos com base na química. Tal técnica foi responsável pela criação de medicamentos com vendas anuais superiores a US$ 10 bilhões. Não por acaso, são conhecidos como blockbusters. O maior deles é o Lípitor, da Pfizer, indicado para a redução do colesterol, cujo faturamento atingiu o pico em 2006, batendo na casa de US$ 12,9 bilhões. Em geral, essas drogas “arrasa quarteirão” atacavam problemas comuns a grandes contingentes populacionais. Buscavam, portanto, as massas. As pílulas são o símbolo máximo dessa era.
Do outro lado da travessia, num ponto futuro para onde a indústria caminha, o cenário é oposto. Isso porque o foco das farmacêuticas está se voltando para males como o câncer, o diabetes ou o Alzheimer. Eles representam alguns dos grandes desafios da medicina. Com o envelhecimento da população em todo o mundo, tendem a se tornar epidemias. Ocorre que o gatilho que dispara esses problemas não é o mesmo em grandes levas de pessoas. Essas doenças surgem a partir de mutações genéticas peculiares a grupos diminutos. Em tese, os novos medicamentos servem para nichos. Não para massas. A esmagadora maioria nem sequer pode ser administrada por via oral. Essas terapias são especializadas – muitas vezes, personalizadas. Em vez da química, os novos remédios estão fundados na biologia e incorporam campos da ciência como a engenharia genética, a bioinformática ou a nanotecnologia. “O problema é que, hoje, toda a indústria passa por uma espécie de vazio de conhecimento. Nós compreendemos o que é possível fazer com as novas tecnologias, mas ainda não sabemos exatamente como chegar lá”, diz João Fittipaldi, diretor médico da Pfizer.

Estragos em P&D
As consequências desse vácuo têm sido flagradas por empresas de consultoria. A PricewaterhouseCoopers (PwC), por exemplo, lançou nos últimos anos uma série de estudos sobre o tema, sendo que o mais recente foi divulgado em fevereiro. Um dos pontos em destaque nas análises é justamente o atual déficit na área de pesquisa e desenvolvimento (P&D, no jargão). Mas, para entender o tamanho desse buraco, é preciso viajar no tempo e regressar para 1996. Aquele foi um ano mágico para as farmacêuticas. Os gastos globais com P&D somaram US$ 17 bilhões e 53 medicamentos novinhos em folha desembarcaram nas farmácias. Na década seguinte, deu-se o oposto. Em 2007, foram gastos US$ 48 bilhões nos laboratórios e somente 18 drogas foram lançadas. Ou seja, na comparação entre esses dois períodos, o investimento em pesquisa triplicou. Em contrapartida, o resultado prático desabou (veja quadro 1).
O problema, pela relevância, já ultrapassou as fronteiras do setor. O governo dos Estados Unidos quer criar um centro público de pesquisas para fomentar a descoberta de novos remédios. As moléculas criadas nesse polo seriam posteriormente comercializadas pela iniciativa privada. O modelo da operação ainda não está fechado, mas seu custo mínimo de instalação foi estimado em US$ 700 milhões. A iniciativa, embora polêmica, é para valer. Nasceu na gestão de Barack Obama e está sendo conduzida pelo geneticista Francis Collins, um figurão do mundo da ciência, um dos responsáveis pelo mapeamento do genoma humano.

O custo do insucesso
Os efeitos colaterais do atual déficit de P&D desabam em cascata. Ao reduzir a taxa de sucesso da criação de um remédio, o custo de produção aumenta. Cinco anos atrás, o valor gasto no desenvolvimento de uma droga, que consome cerca de dez anos de pesquisa, girava em torno dos US$ 600 milhões. Hoje, dobrou. Foi para US$ 1,2 bilhão.
Tal elevação não está associada somente a problemas dos laboratórios. Ela também reflete o aumento astronômico das exigências de órgãos públicos para a aprovação de novos produtos. Governos e seguradoras de saúde, seus principais compradores, querem evidências cada vez mais nítidas da eficácia das novas terapias. Por isso, o episódio da Janssen-Cilag, citado no início desta reportagem, não deve ser visto como um caso isolado. Ele expressa uma tendência, batizada de “pagamento por desempenho” (ou payment for performance).
Mas, para atingir esse novo patamar de precisão, as empresas precisam caprichar – leia-se gastar – cada vez mais nos testes com medicamentos. Nos anos 60, essas provas eram feitas com 150 pacientes. Hoje, para uma droga estrear no mercado, seus efeitos devem ser observados em grupos de até 8 mil pessoas. Os exames complementares incluem tomografias computadorizadas e mapeamentos genéticos. “E acabou a história do me too”, diz Adib Jacob, diretor-geral da Novartis no Brasil. Até recentemente, uma droga, mesmo que parecidíssima com outra já existente, contava com chances razoáveis de aprovação por parte dos órgãos públicos. Daí, o termo me too como sinônimo de cópia ou plágio. “Agora, para lançar um produto, precisamos provar suas vantagens farmacêuticas e econômicas em detalhes. E essa mudança é boa: valoriza a inovação, mas exige mais das empresas”, afirma o executivo.

A pá de cal
Outro desdobramento do déficit de P&D é a chamada crise das patentes. O fim desse tipo de proteção, que dura uma década em média, atingirá em cinco anos um número inédito de remédios. Na lista, há campeões de vendas como o Lípitor, cuja receita mundial foi de US$ 10,8 bilhões no ano passado, e o Zyprexa, um antipsicótico da Eli Lilly, com faturamento anual de US$ 5 bilhões. A consultoria americana Sanford C. Bernstein calculou que a queda de patentes entre 2008 e 2015 provocará um rombo superior a US$ 250 bilhões na receita da indústria. Sim: US$ 250 bilhões, o PIB de países como Finlândia ou Portugal.
É evidente que as companhias farmacêuticas já esperavam por esse momento. O impacto da perda da propriedade intelectual sobre a fórmula de uma droga é algo que pode ser programado com grande antecedência. A agravante, entretanto, é que o fosso das patentes acontece justamente num momento em que os produtos novos não conseguem superar, e nem sequer igualar, o faturamento dos velhos blockbusters. E, para piorar, com o término da proteção, os remédios seguem uma rota inequívoca: viram genéricos. Sob o ponto de vista do consumidor, essa é uma notícia auspiciosa. Para a indústria, representa uma pá de cal na rentabilidade. Um genérico custa 30% do preço do produto de marca.

Ninguém é bobo
Diante de tantos entraves, a indústria está promovendo ajustes importantes. Em artigo publicado pela revista britânica The Economist, o CEO mundial da Glaxo-SmithKline, Andrew Witty, defende mudanças na área de P&D. Prescreve ações cirúrgicas, em que os recursos financeiros sejam direcionados somente para empreitadas com elevada possibilidade de êxito. “Os acionistas não estão preparados para ver mais dinheiro ser investido em pesquisa sem sucessos tangíveis”, escreveu Witty. Difícil é aplicar a dose certa desse remédio. P&D é a alma das empresas farmacêuticas. Cortes exagerados nesse campo podem ser fatais. Pascal Soriot, executivo chefe da Roche global, observa: “Sem grande capacidade de inovar, ninguém sobrevive neste setor”.
Em outro passo importante, os gigantes do ramo também estão adquirindo companhias já familiarizadas com o novo mundo da biologia. Essa ação permite encurtar o caminho para o futuro – além de reforçar as vendas no curto prazo. Em março de 2009, a suíça Roche pagou US$ 46,8 bilhões pela americana Genentech, uma potência da biotecnologia, fundada em 1976 no Vale do Silício. Com a incorporação da companhia californiana, o conglomerado suíço acrescentou ao seu repertório remédios biológicos como o Avastin, o Rituxan e o Herceptin, com faturamento superior a US$ 15 bilhões por ano. Lógica semelhante levou a Pfizer a comprar a Wyeth, com operações em 145 países, por US$ 68 bilhões, também em 2009, e a Sanofi-Aventis a engolir a Genzyme, por US$ 20,1 bilhões, em fevereiro deste ano.

Pela borda
Os países emergentes representam outra oportunidade de recuperação para as grandes farmacêuticas. A consultoria IMS Health estima que esses mercados crescerão entre 13% e 16% nos próximos quatro anos. A China avançará 20%. O Brasil também chama a atenção nesse cenário. O país ocupa a décima posição no ranking da indústria de medicamentos. Em 2014, a previsão é que salte para o sexto lugar, superando países como a Espanha e a Itália.
Aqui, a festa é dos genéricos. Eles representam 21,3% das vendas e 17,2% do faturamento do setor. Em 2001, esses números eram pífios: respectivamente, 3,1% e 2,6%. E esse campo registrou uma agitação extra no ano passado. As patentes dos pesos-pesados Lípitor e Viagra expiraram no Brasil antes do prazo previsto para o restante do mundo. A queda ocorreu por decisão da Justiça, após um longo debate sobre a data em que ambas as proteções haviam sido depositadas no país. Sintomática, entretanto, foi a reação da Pfizer, a dona das duas drogas. “Decidimos que iríamos brigar por esses produtos. Afinal, fomos nós que criamos esse mercado no Brasil”, diz Victor Mezei, presidente da empresa.
Em abril de 2010, a companhia firmou um acordo inusitado com a Eurofarma, com fábricas em São Paulo e Rio de Janeiro, para se antecipar à concorrência e lançar seu próprio genérico do Lípitor no país. Seis meses depois, em outubro, pagou R$ 400 milhões para comprar 40% do laboratório Teuto, de Anápolis, Goiás, outro fabricante de remédios sem marca. Em relação ao Viagra, adotou táticas de guerrilha. Com a extinção da patente, logo de cara cortou o preço do produto pela metade. Criou ainda uma embalagem mais econômica, com somente um comprimido, sendo que o medicamento tinha apresentações com duas, quatro e oito pílulas. O resultado da batalha tem sido animador. Quando um remédio se transforma em genérico, perde até 70% do faturamento no primeiro ano. A Pfizer conteve esse percentual em 22%, no caso do Viagra.

Longe do fim
Embora passe por um longo inferno astral, a indústria farmacêutica está longe de ruir. Ainda há, por exemplo, muito espaço para crescer no mundo da química. Até agora, ninguém lançou um Viagra para mulheres ou uma pílula contra calvície. Os medicamentos para o sistema nervoso e as terapias com células-tronco ainda engatinham. Além do mais, a indústria tem pela frente um futuro empolgante. Ainda que em fase experimental, testes com drogas já começam a ser feitos em ratos virtuais, cuja essência biológica é reproduzida por modelos computacionais. Robôs em escala nanométrica (o equivalente à bilionésima parte de um metro) estão sendo testados para depositar medicamentos somente em células cancerígenas, com precisão que só pode ser definida como ficcional. Pequenos chips introduzidos em pacientes já monitoram sinais vitais e os transmitem pela internet sem fio para médicos ou hospitais.
Os medicamentos biológicos também têm demonstrado um alcance inesperado. Alguns produtos criados para combater um tipo de câncer no colo retal mostram-se eficazes no tratamento da doença no pulmão ou até em problemas na retina. Outros, voltados para um tipo de leucemia, são usados com sucesso contra tumores estomacais. “Exemplos como esses mostram que os novos remédios não são tão restritos a nichos como se imaginava. No futuro, eles também podem alcançar as massas”, diz Adib Jacob, da Novartis. E isso muda totalmente o placar do jogo.

Os biogenéricos vêm aí
Há uma diferença crucial entre os medicamentos convencionais, feitos a partir da síntese química de substâncias, e os biológicos, como as novas drogas criadas para combater o câncer. Trata-se do tamanho das moléculas. Uma aspirina tem 21 átomos. Um anticorpo produzido com base na biotecnologia reúne 25 mil átomos. A diferença entre esses produtos é semelhante à existente entre uma bicicleta e um jato executivo. E essa não é uma comparação fortuita. Foi extraída de um estudo da Roche. Tamanha complexidade dos biológicos traz uma vantagem: dificulta a produção de genéricos (ou biogenéricos). Alguns especialistas vão mais longe: consideram impossível que um remédio biológico seja realmente copiado. Mas na segunda metade da próxima década, começam a expirar as patentes de biológicos de peso, cujo preço é elevadíssimo. O ciclo completo de um tratamento de câncer com esse tipo de drogas pode custar US$ 50 mil. Os genéricos têm o poder de levar esses preços para perto da lona. E os governos vão pressionar para que isso aconteça. “O problema é como esses produtos serão feitos e quais resultados vão oferecer”, diz Maurício Lima, diretor médico da Roche. No Brasil, a discussão sobre o tema gira em torno das normas que irão balizar esse mercado.


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