A saga do Dr. Oswaldo e os mitocrôndrios
Era dia de grande alegria na casa dos Esteves. Oswaldinho entrara na faculdade. O sonho da mãe em
ter um filho médico e os planos do pai em fazê-lo realizador das pesquisas com que ele sempre sonhara
pareciam tornar-se realidade. Oswaldinho na faculdade. Depois de tanto esforço, de tantas horas de
estudo e dedicação. Era a coroação dos esforços conjuntos daquela família de classe média.
Psicólogo behaviourista dos mais radicais, o pai gabava-se da educação que dera ao filho e, sobretudo,
da longa preparação para aquele vestibular. Desde o momento em que fora escolher uma escola de
segundo grau para o garoto, fizera a exigência.
- Nada dessas escolas humanistas, arcaicas, cheias de ranço filosófico e religioso. Nada desses
sociologismos e conscientizações políticas desses padres comunistas. Ele precisa de uma escola que
ensine a resolver problemas. Afinal a vida não é, quase sempre, uma questão de múltipla escolha? Não
importa que não desenvolva muito esse negócio de redação, letras, filosofia ou história. Quem resolve
problemas avança, tem sucesso e, se necessário, paga alguém para cuidar dessas amenidades. O que
vale hoje é aquele que sabe ir direto ao assunto.
Assim, a formação e, principalmente a preparação de Oswaldinho para o vestibular, fora feita em clima
de muita objetividade, de direcionamento para o fim a ser alcançado: entrar na faculdade. Por isso era
dia de grande alegria na casa dos Esteves. Dia de alegria e de festa. Dia de visita de parentes e de
amigos para se congratularem com o novo calouro e com o seu principal artífice: o orgulhoso pai. Este
não perdia a oportunidade para dividir com o filho os louros da vitória. Afinal fora sua visão positivista,
objetiva, comportamentalista mesmo, que direcionara àquele resultado tão magnífico. Mais do que a
vitória do filho, comemorava ele a vitória da técnica, da objetividade, da estratégia na modelagem do
espírito humano.
Assim, irmanados pelo mesmo ideal e desfrutando da mesma euforia, Oswaldinho e Esteves dividiram
aquela festa de comemoração.
- Então vou ter um filho médico, brindou Dona Luísa, a mãe, não muito afeita a aspectos culturais e
educacionais. Era mais coração do que razão. Por isso deixava essas coisas para o pai: psicólogo,
intelectual pesquisador, "um verdadeiro sábio nem sempre bem reconhecido". - Um filho médico, meu
grande sonho, repetia quase à exaustão.
- Vou ser pediatra, setenciou objetiva e deterministicamente Oswaldinho para espanto dos presentes.
- Mas você já escolheu a especialidade mesmo antes de começar o curso?, espantou-se um tio que era
professor secundário.
- É claro, respondeu Oswaldinho. A gente precisa saber bem o que quer na vida. Saber, estabelecer
objetivos e persegui-los com tenacidade, continuou o rapaz, para orgulho do pai.
E Oswaldinho foi para a faculdade para ser médico, isto é, pediatra.
Oswaldo era efetivamente um aluno excelente e determinado, quase obstinado. Poderia não ser o
melhor, mas estava invariavelmente entre os melhores da sua turma. Se às vezes deixava em segundo
plano uma disciplina era porque nela não via muita relação com a pediatria. Mas naquelas em que
sentia a relação direta ninguém o batia. Era sempre o melhor, o primeiro, o mais dedicado, quase
fanático.
Tendo feito um curso quase brilhante, a formatura do Dr. Oswaldo foi o corolário natural de uma carreira
acadêmica bem sucedida e, sobretudo, bem direcionada.
- Enfim temos um pediatra na família, exclamou a mãe orgulhosa ao abraçá-lo no dia da formatura.
- Vou ser neonatologista, anunciou triunfalmente o novo médico. Consegui vaga na residência.
- Neo...o quê?, espantou-se o tio, agora já professor aposentado.
- É uma especialidade nova, explicou Dr. Oswaldo. É o médico de berçário. Aquele que atende o recémnascido.
Que cuida das crianças nos primeiros 30 dias de vida.
- Mas precisa um médico só para isso?, espantou-se o velho e secundário mestre.
- É claro tio. É o progresso da ciência médica, da tecnologia, da especialização, setenciou o jovem. A
medicina tem de seguir o caudal do progresso. Vou para essa Segunda etapa da minha vida acadêmica
com a mesma determinação com que venci a primeira, entusiasmou-se Oswaldo diante da estupefação
do tio.
E o Dr. Oswaldo tinha razão. Sua residência foi pontilhada de episódios engrandecedores. De horas e
horas de dedicação plena junto ao berço de recém-nascidos, deles cuidando com o desvelo que só os
predestinados têm. Tanta dedicação, tanto esforço, tanto estudo, teriam de ser premiados,
reconhecidos e direcionados para a pesquisa. Tão logo o Dr. Oswaldo conclui sua residência foi
convidado para fazer mestrado.
Intrigava-o, principalmente, o aparelho digestivo dos recém-nascidos. Quantas vezes apresentavam
disfunções diarréicas que não raramente traziam conseqüências futuras muito graves, até com evolução
para o óbito. O mestrado iria propiciar-lhe a oportunidade de fazer essa pesquisa. E, noites a fio,
dedicou-se à pesquisa seguindo fielmente as determinações do seu orientador. Tão fielmente que
nunca se furtou em dividir com ele todos os artigos que publicara em revistas médicas, embora todo o
trabalho fosse exclusivamente seu. Seu empenho era tão grande no estudo e na pesquisa da tal
síndrome diarréica, que acabou se tornando um neo-nato-gastro-enterologista. Não mais tratava de
outra coisa. Afinal, suas pesquisas estavam direcionadas para aquela área, para aquele campo, para
aquela especialidade.
Sua dissertação de mestrado foi absolutamente brilhante. O dez com louvor que recebeu da banca
examinadora foi pouco perto da recomendação explícita para que continuasse na pesquisa, pois seu
trabalho demonstrava que ele estava no caminho certo. A dissertação abria perspectivas para um
efetivo avanço da neo-nato-gastro-enterologia.
O doutorado foi uma conseqüência lógica na carreira brilhante do agora Mestre Oswaldo. Suas
pesquisas prosseguiam cada vez com mais especificidade, agora dirigidas para as células do intestino
grosso do recém-nascido. "Lá deve estar a chave do mistério", pensava ele dia e noite, inteiramente
absorvido pela sua pesquisa de doutorado.
Um dia tomou uma decisão. Não atenderia mais no berçário, nem no ambulatório. Iria se concentrar em
pesquisas de laboratório. Examinaria minuciosamente no mais sofisticado microscópio, e com o auxílio
da mais alta tecnologia, a estrutura celular do intestino grosso dos portadores da indigitada síndrome.
Isso possibilitou-lhe a extraordinária tese doutoral sobre a relação entre a estrutura celular do intestino
grosso do recém-nascido e a tal síndrome diarréica, tese que, aliás como já era hábito, foi saudada com
os mais encomiásticos elogios, a nota máxima e o encorajamento para novas pesquisas sobre o mesmo
e intrigante assunto.
O Prof. Dr. Oswaldo Esteves tornara-se um verdadeiro homem de ciência, vivendo dela e para ela. É
claro que isso custou-lhe algum preço. Afastamento da família após prolongada crise conjugal, uma
certa limitação financeira, uma certa excentricidade de idéias e de atitudes e, o pior, um quase total
isolamento. Não tinha amigos, apenas colegas de universidade, com os quais ficava cada vez mais
difícil conversar, pois quase nunca se interessavam pelo seu trabalho, pelas suas pesquisas e, quando
o faziam, mostravam tal ignorância no assunto que tornava quase impossível o diálogo. Aliás, o fato se
invertia quando os outros pesquisadores tentavam em vão mostrar-lhe suas "desinteressantes
descobertas".
"A solidão talvez seja o preço da sabedoria
", setenciava para si mesmo em suas elucubrações
solitárias em seu apartamento de descasado, rodeado de pilhas de livros e de estranhos aparelhos, de
utensílios domésticos e de lâminas de pesquisa, essas sim cuidadas com o mais absoluto cuidado.
Foi em sua tese de livre-docência que relacionou a tal síndrome do mitocôndrio das células periféricas
do intestino grosso do recém-nascido. Foi o grande salto qualitativo que o notabilizou, que o tornou
internacional, figura obrigatória nas revistas especializadas. Até foi contemplado com uma menção no
programa de Domingo da Rede Globo, Fantástico, embora com aparição de apenas 35 segundos. Isso
o tornou mais conhecido mas não aplacou sua solidão. Enfim, quem entenderia de mitocôndrios de
células periféricas do intestino grosso de recém-nascidos portadores da diarréia crônica? E quem se
interessaria em conversar sobre tão relevante assunto em momentos de tamanha crise econômica?
Mas o que era uma passageira questão econômica face a uma descoberta científica de tal magnitude?
"Será que esses idiotas não percebem?", pensava ele meio desolado, quando a solidão era mais
aguda.
Oswaldo estava tão absorto por suas pesquisas que chegava a dialogar com os mitocôndrios, como se
deles esperasse uma resposta para o grande enigma diarréico. Nem o grande confisco determinado
pelo governo, e que atingiu em cheio sua magra poupança de tantos anos, chegou a abalá-lo. Pior seria
se lhe tivessem tirado as verbas para a pesquisa, ou lhe tivessem impedido de ir ao Congresso de
Pediatria de Madrid, onde se inscrevera para apresentar seu trabalho.
Esse congresso era para Oswaldo de extrema importância, pois lá estariam as duas únicas pessoas no
mundo que também tinham pesquisa no mesmo campo e que, enfim, poderiam com ele conversar de
igual para igual. E ambas haviam confirmado sua presença no congresso, o russo Dr. Antoniov e a
italiana Profa. Brunelli. O fato de entre eles existir uma mulher, e italiana, chegou a despertar-lhe
pensamentos para além do âmbito científico, acordando a libido que havia sido adormecida pelos
mitocôndrios.
O congresso foi de grande valia para o livre-docente Dr. Oswaldo Esteves. Sua apresentação foi muito
elogiada. Embora não tivesse ainda resolvido o problema da estranha síndrome, havia dado, com seu
relatório de pesquisa, uma contribuição inestimável para que, no futuro, novas conquistas fossem
realizadas. Os trabalhos de Antoniov e Brunelli também foram de grande importância para ele, a ponto
de lhe despertar sensações quase orgásticas durante o intercâmbio de informações científicas no
simpósio sobre o assunto. Pena que o lado humano do congresso não tivesse sido consentâneo com as
expectativas feitas anteriormente por Oswaldo. Fora das reuniões científicas pouco pôde ser
estabelecido em termos de relacionamento com as duas únicas pessoas com quem poderia enfim
dialogar de igual para igual, pois o russo não falava inglês e Oswaldo não falava russo. E assim não
puderam se comunicar através de intérpretes. A Profa Brunelli, por sua vez, havia enviado um brilhante
trabalho, mas não pudera estar presente, pois estava internada em uma clínica de repouso para
moléstias nervosas.
A volta de Oswaldo, guardadas as decepções da falta de relacionamento humano no congresso, foi
triunfal. Definitivamente consagrado e reconhecido como uma autoridade internacional. Isso aumentou
sua obstinação pela pesquisa. Praticamente mudara-se para o laboratório onde varava semanas e
semanas debruçado sobre seus estudos, prisioneiro deles e quase isolado do resto do mundo.
Construíra um universo a partir do seu campo de pesquisa e nele vivia como um habitante solitário e
obcecado. Só não era considerado anormal pois, na universidade onde trabalhava, alguém daquela
jeito até que não era difícil de se encontrar. Estabelecendo-se algumas características diferenciadoras,
principalmente relacionadas com a área de pesquisa de cada um, pessoas como ele eram até quase
comuns naquele lugar, cada uma com sua excentricidade, cada uma com sua "sapiência", cada uma
com sua onipotente auto-suficiência. E todas impregnadas de uma incomensurável solidão. Mesmo os
poucos contatos com alunos, na obrigatoriedade das aulas, só servia para mais diferenciar os dois
mundos: o dos cientistas e o dos pobres coitados entretidos com as insignificâncias do dia-a-dia.
Oswaldo chegava a sentir-se protegido em seu laboratório. Era como um intestino, ou melhor, um útero
materno, terno e aconchegante, familiar, hospitaleiro e compreensível. Chegava por vezes,
inconscientemente, a desejar que não se encontrasse a solução para a estranha doença. Já imaginara
o que seria dele sem ela? Sem sua razão de viver?
Mas quando era assolado por tão infames e anti-científicos pensamentos, logo os afastava como num
ato de exorcismo ou de descarrego, e deles se penitenciava através de longas horas de dedicação
estóica à pesquisa no admirável mundo dos mitocôndrios.
Numa tarde, quando maior era sua absorção pela pesquisa, ouviu baterem à porta.
- Pode entrar, respondeu mecanicamente Oswaldo.
- Com licença, professor. Era Zequinha, um faxineiro novato do departamento, que com ar meio
macambúzio se aproximava do grande mestre.
- Entre, Zequinha. Se veio me avisar da hora, pode deixar. Se quiser, pode ir pra casa que eu mesmo
cuido de tudo. Preciso ainda corar algumas lâminas e vou levar bem mais de duas horas.
- Não. Não é isso não, doutor, respondeu o humilde faxineiro. É que eu estou como uma bruta diarréia
faz três dias. E com o senhor é médico e entendido dessas coisas eu vim ver se o senhor pode me dar
um jeito.
A reação do Dr. Oswaldo foi absolutamente paralisante. Ficou estupefato diante de Zequinha. O rosto
tornou-se lívido, as mãos encheram-se de suor, os olhos se esbugalharam e ficaram fixos no pobre e
diarréico faxineiro. E, como se estivesse em transe, caminhou lentamente em direção a Zequinha, que
àquela altura se estava mais assustado ou borrado. Encarou-o frontalmente e em tom apocalíptico
ordenou:
- Suspenda imediatamente as mamadeiras de leite artificial. Só tome peito. Compre soro Hidrax e tome
uma colher das de chá a cada meia hora. Não deixe as fraldas ficarem encharcadas. Vá lá pra casa
fazer o que eu mandei e, amanhã de manhã, traga uma fralda descartável suja de cocô para eu fazer
uma lâmina e examinar os miticôndrios. Mas que seja descart´vel, senão os mitocôndrios não
aparecem. Não coma nada a não ser leite de peito e Hidrax. Nem chá, ouviu? Entendeu bem? Agora vá
e só me apareça amanhã com a fralda, para eu examinar os seus mitocôndrios.
- Para examinar os meus o quê?
- Mitocôndrios, seu idiota.
Zequinha retirou-se meio estupefato e, de posse de violentas cólicas, dirigiu-se ao banheiro. Na saída,
encontrou Rosa, a faxineira mais antiga do departamento e tentou relatar-lhe o diálogo de minutos
antes.
Rosa ouviu atentamente, pensou, pensou.
- Só não entendo uma coisa, inquiriu Rosa. Mito o quê?
- Mitocôndrios, foi o que ele falou, respondeu o pobre Zequinha.
- Mitocôndrio, mitocond...ah, já sei, respondeu a velha. É uma doença que dá nas pessoas que estudam
muito. Ficam com mania. Aprendi isso quando trabalhei no departamento de Psicologia.
- Mania do quê?, interrogou o Zequinha curioso.
- Sei lá do quê, respondeu a faxineira. Só sei que o professor Oswaldo está MITOCONDRÍACO!
- Mitocondríaco?, assustou-se Zequinha. E isso tem cura?
- Sei lá se tem, respondeu Rosa. Mas isso não te interessa. Vê se vai pra casa e faz uma papa bem
grossa de água de maizena que você fica logo bom.
(...)a integração do conhecimento humano é inerente ao processo mental humano. E mais, é
natural. A perda dessa capacidade se deu pela exercitação mental conduzida por um processo
tecnicista e mecanicista. Logo, o caminho inverso só pode ser feito pela via oposta, usando-se
o próprio ser humano como veículo de aprendizagem e de vivência do novo paradigma e da
explicação do seu produto: o saber plural.
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PARADIGMA ALTERNATIVO
Sempre, absolutamente sempre, existe mais de um caminho a ser seguido. No mínimo dois! O que ocorre é que cada dia mais as pessoas vão se prendendo, se fixando e se deixando levar por modelos e formas de pensamento pré-estabelecidos, ao estilo "fast-food". É mais prático, mais simples, mais rápido. A pergunta que se faz é? - Realmente é valoroso para nós? Até que ponto sermos a ovelinha do rebanho significa o tudo de bom para nós? Agindo dessa forma, no automático, no pré-estabelecido ganhamos mesmo o tempo? Aquele tão almejado? Conseguimos passar mais tempo conosco, com aquilo que gostamos de fazer, com a riqueza da vida na sua amplitude? Ou estaremos passando de automático a automático sem perceber? Pensar por sí, se diferenciar criticamente, ter opinião própria, diversa da massa é estar na vitrine! É se expor...e até que ponto o indivíduo quer se expor. O pensamento de massa exclui a responsabilidade do individual.É mais cômodo. Menos arriscado. Não crio divergências nem inimizades. O que temos de fazer não termos o medo de ser diferente, de fazer diferente! Temos de acreditar que somos capazes, temos de acreditar que podemos desenvolver pensamentos diversos mas aí cabe um detalhe: temos de descobrir e desenvolver a habilidade de inter-relacionamento e empatia capazes de nos colocar em meio ao grupo, a sociedade, pensando e agindo de modo diverso, mas fazendo-nos entender, aceitar e respeitar por nossa diferença. Ou seja, a forma ganha relevância...
by Luciano Steffen
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