Não ousaria falar em destino. Não com o fatalismo que recheia essa
palavra, pelo menos. Mas quero falar do inevitável, de algumas coisas que fazem
parte da trajetória de cada um, a viagem sem volta da história em movimento, da
impossibilidade de permanência. Em algum lugar, Rainer Maria Rilke escreveu um
pequeno poema que diz algumas coisas disso aí. Não tem título, não sei quem
traduziu, não sei de onde tirei:
Como os pássaros,
Alguns que moram nos grandes sinos
Dos Campanários
Súbito, pelo sentimento da retumbância
São desalojados e impelidos em seu vôo
No ar da manhã
E escrevem a bela forma de seu susto
Ao redor das torres:
Não podemos permanecer em nossos corações
Quando os sinos soam.
Este jogo começa com um preâmbulo de fatos. Tudo são fatos. Só posso
falar em fatos. Mas eles traduzem o intradutível: os acontecimentos. Os fatos que
precedem o início do jogo é a grande tartaruga marinha fêmea, prenhe de muitos
ovos, rastejando pela praia, com dificuldade. Ela já acasalou e foi feliz (isso é decisão
minha, não precisava). Veio à praia fazer seu ninho. Bem longe do alcance da água,
cava lentamente um grande buraco. Ali, deposita seus ovos e os cobre com a areia
quente. Não é ela quem vai chocá-los, mas o calor do sol. Sua parte está feita, sua
tarefa, cumprida. Lava as mãos para o destino da ninhada. Nosso ponto de partida é
o ninho.
1.Clara e gema
A vida está se formando, um indivíduo está acontecendo. Clara e gema vão
dando origem a alguém. Tudo se desenvolve no interior do ovo, vizinho de outros
ovos, dentro do ninho. Tudo é muito particular, os processos são muito semelhantes.
Ainda não há nada singular, a história ainda não começou. O estado presente das
coisas não passa de uma materialidade se diferenciando, tudo é muito primário, muito
primitivo: o calor do sol sobre a areia, a umidade do chão, o tempo decorrendo,
eterno... o ovo não passa de um ovo, ele ainda não é ninguém. Leva tempo até que
ninguém venha a ser alguém. Espera. Fica uma rodada sem jogar.
4. Ainda no ovo, querendo sair
Pronto, já temos alguém. E esse alguém está começando seus movimentos,
descobrindo suas necessidades e suas vontades. Ele está querendo vir a ser. Seu
primeiro movimento de desenhamento de si, sua primeira atitude em favor de si é sair
do ovo. O ovo foi útil, foi fundamental. Mas, para ser alguém, de verdade, precisa sair
dali de dentro. A natureza da história é, justamente, abandonar ovos, desfazer figuras,
deixar lugares e constituir outros, produzir novos, habitar diferentes. Por mais
acolhedor, seguro, quentinho que seja o ovo, ele não dá a menor possibilidade. Ainda
que a tentação seja grande, é preciso abandoná-lo. Mesmo porque, com as coisas
acontecendo, a gente não cabe mais nele e ele se desmancha. Mas, esperar que ele
se desmanche é muito pouco: vale a pena quebrar a casca e sair, com vontade,
impelido pelo próprio movimento. Então, duas possibilidades: tomar a iniciativa ou
deixar-se à mercê do tempo. Se a escolha for por deixar-se à mercê, volta para o
início da trilha: tudo bem, é um jeito de viver, esse de ser levado, aos trambolhões,
pelas coisas. Mas é um jeito burro... por que abrir mão de ter a prerrogativa de si? Se
a escolha for por fazer seu caminho, boa idéia: avança para a casa número seis.
7. Saindo do ninho
Pensou que era só sair do ovo e pronto? Ledo engano... Os ovos (lembra?)
estão cobertos de areia. Tem que cavar, cavar, cavar para, então, sair para céu
aberto. Aquele sair do ovo era só um ensaio. A história não é fácil: não existe o felizes
para sempre, não existe para sempre. Cada passo é um passo em direção a outro
passo. Passos que se sucedem. Tem passos que já vêm prontos, modelos de
caminhar. E tem passos que ninguém ensina, que ninguém aprende: são passos
únicos em cada desenho. Um detalhe: não dá para ser original o tempo todo; mas não
tem por que deixar-se levar pelos passos pré- estabelecidos, também, o tempo todo.
Bueno, onde estávamos? Ah, na saída do ovo: o fulano saiu do ovo e encontrou-se
envolvido por areia, muita areia. Não dá tempo de tomar fôlego. Não há fôlego. Tem
que cavar, continuar cavando. Diria que esses são os primeiros passos da
tartaruguinha. Sair do ovo foi uma atitude de escolha por si. Sair do ninho será, de
verdade, o primeiro movimento de constituição desse si escolhido, o primeiro
desenho, a primeira figura, o primeiro exercício proposital. Se ela tivesse se deixado à
mercê do crescimento, permanecendo no ovo até não caber mais nele e a casca
quebrar-se por pressão involuntária, talvez não houvesse, também, a conseqüente
iniciativa de cavar (porque ela se deixaria, novamente, à mercê). Mas não é o nosso
caso. Nossa tartaruguinha está decidida e vai cavar, está cavando. Prêmio estímulo -
avança uma casa: são uns punhados de areia tirados do caminho.
11. No exterior do ninho, de cara pro sol
Tudo (o ovo, o ninho de areia, a praia) ainda é dentro. Estar na praia, na
superfície do ninho, ainda é estar dentro. É exterior com relação ao interior do ovo, ao
interior do ninho. Mas ainda não é fora. Até agora, os movimentos têm sido
movimentos primários de constituição de si, de auto-apropriação, de escolha. Até
agora, a tartaruguinha esteve aprendendo as dimensões desse si que está
escolhendo. E, ao sair do ninho, ao chegar na superfície da areia, ela conseguiu
espichar o olho e olhar o mar. O mar é o fora, o não- lugar para onde ela vai. Na areia
aberta, ela está na borda, na fronteira entre o dentro e o fora. Foi difícil chegar aqui.
E, como disse antes, cada passo leva a outro passo, que leva a outro passo. Por
enquanto, ela ainda não chegou a nenhum lugar em que possa ficar um tempo: todos
os lugares a que chegou (o ovo, o ninho, a areia) são lugares que, ao serem
descobertos, percebidos, habitados, precisam logo ser abandonados. Seu horizonte já
abriu, seu olhar já alcança mais longe, ela já percebe que seu mundo mais imediato (
cada um dos nichos descobertos e abandonados) é um pedaço habitado de um
mundo maior. Cada figura sida é um lugar habitado, demarcado no espaço mais
amplo. Provavelmente, não se desse conta disso. Provavelmente, pensava que a vida
era assim mesmo e que o mundo era daquele tamanho. O que ficou para trás, o ovo e
o ninho, são estados de retenção, figuras paradas de uma história. Ovos são bons
para incubar a vida, para proteger o indivíduo enquanto ele se forma: não para
sempre. Ninhos são bons para a gente viver um tempo, para curtir um pedaço da
história. Mas temos de abandoná-Ios, sair fora, desfazê-Ios para, depois, fazer novos.
Então, fez-se a luz e a tartaruguinha entendeu que a vida é para ser vivida, que sua
história deve ser trabalhada, escolhida, produzida dentro de um campo ilimitado de
potencialidade. Sua figura vivida é finita. Porém, sua potência de vir a ser é ilimitada.
E é isso que se descortina diante dela, ali parada, de cara pro sol, de frente pro mar.
O susto é grande. O futuro se agita dentro dela, um vulcão parece querer explodir. Ela
fraqueja. Até que restabeleça seu ímpeto de viver, de vir a ser, fica uma rodada sem
jogar .
14. A caminho do mar
Lá vai ela!.. Lá vamos nós! Correndo o quanto podem correr nossas pequeninas
pernas. Fugindo do calor do sol, dos olhos ávidos das gaivotas, abandonando tudo
que fomos, correndo em direção a tudo que virá, lá vamos nós. Um movimento
irreversível. ..jamais poderemos voltar ao que éramos. E não podemos vacilar.
Quando sabemos que exjste o mar, não há como disfarçar e recusá-Io: somos
tartaruguinhas marinhas. Queremos o mar.
E lá vamos nós, deixando para trás tudo o que fomos, indo em direção ao que
ainda não somos. Mas, no caminho, uma força veio de fora e interferiu tudo: uma
gaivota se atirou e, num vôo rasante, catou a tartaruguinha no bico e levou embora
para o seu ninho, para ser almoçada pelos seus filhotes. Pena. Um raio nos atingiu e
fomos condenados ao ninho. De outro, mas ninho. Pena. Volta para o início e
recomeça sua história.
18. A caminho do mar
Nem sempre a vida é drama. Sempre é trágica, pela radicalidade com que pode
ser vivida. Drama é o final infeliz da casa catorze. Tragédia é a irreversibilidade de
qualquer ato vivido. E há que aprender com isso. O vôo rasante da gaivota, a fome
que ela tem, são inevitáveis. Precisamos contar com isso, aprender com isso. Não
sairemos impunes da vida. Sairemos com marcas, como as casas marcadas deste
jogo. A interferência sempre vem. No meio do caminho, entre o ninho e o mar, não
temos onde nos esconder, onde nos refugiarmos. Voltar para o ninho é perder todas
as conquistas até então conseguidas. Cavar um novo ninho pode acabar com as
reservas de força que temos para chegar ao mar. Precisamos ir em frente. Enfrentar a
gaivota, o sol forte, as poucas forças: essas são as condições que nos atravessam e
com as quais fazemos nossa história. Esta casa serve para fortalecer a tartaruguinha:
não tem punição nem prêmio. É só para dar referência. Aliás, dizer que, no caminho,
não há referência. Não há certificado de garantia nem manual de instruções: as
regras do caminhar são resultado da alquimia de forças vividas, forças que vêm de
dentro e de fora. Apenas uma palavra: vai em frente !
Chegada: o mar!
Fim da primeira etapa. Um ninho foi desfeito e um impulso projetou a
tartaruguinha no mar. Só que o mar é lugar nenhum, é tudo e nada, ao mesmo tempo.
A vida começa aqui, no mar, onde tudo está por fazer. A tartaruguinha, é verdade,
não pode escolher em ser médica ou professora ou modelo: ela vai ser tartaruga. Mas
vai escolher seus caminhos, seus parceiros, suas viagens. E vai construir seus ninhos
muitas vezes. E vai desfazê-Ios a cada vez. Vai sair do mar e voltar ao mar repetidas
vezes. E, assim, vai ser sua vida: no mar absoluto vai desenhar uma trajetória
singular, vai fazer uma história que será só dela. E vai cruzar sua história com outras
histórias, de tartarugas, de peixes, de homens, de correntes marítimas, enfim: vai
fazer histórias. E novos ovos virão, com clara e gema, para alimentar as aves de
rapina ou produzir novos indivíduos parentes da tartarugona-mãe.
Prof. Marcos Villela Pereira – UFPEL
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COMPLEXIDADE É VIDA
A soma de nossas experiências é determinante na forma como vamos lidar com os desafios que se apresentam no dia-a-dia. As experiências bem fixadas, permitirão uma análise mais próxima do equilíbrio da resolução. Mesmo não tendo experienciado algo específico que esteja diante de nós, se já desenvolvemos a habilidade de análise e percepção, menos complicado será a resolução. Além do mais, ser complexo não significa ser difícil ou impossível, mas sim, mais rico, mais diverso e com mais opções. Mais uma vez, as experiências contam! Visto que, maior proveito tiraremos de um universo de desafios mais ricos. Cabe ressaltar aqui, que assim como a borboleta precisa fazer esforço com suas asas para romper o casulo e poder voar (pois se a ajudarmos nesse processo, fazendo por ela o esforço, suas asas não terão tônus suficiente para voar e ela morrerá) nós também temos de buscar fazer por nós o processo de crescimento, aprendizagem e fixação, para assim também podermos voar. Alçar vôos maiores frente novos desafios.
by Luciano Steffen
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